sexta-feira, 27 de maio de 2011

Das lembranças finais

(revivendo o blog com uma temática diferente da proposta, mas pertinente ao meu momento)

Quando era mais nova, me orgulhava em dizer aos coleguinhas que tinha o privilégio de ter todos os meus avós vivos e por perto. Visitava-os religiosamente aos domingos. Aos 18 anos, então, perdi minha avó Alice. Nunca havia convivido com a morte de parentes. Um choque, uma tristeza inexplicável e uma dor que se alastrou por anos na figura triste de meu avô Castro, que, viúvo, chegou a receber proposta de duas senhoras da igreja para morarem juntos, mas se recusou afirmando ser "homem de uma mulher só e fiel à dona Alice até a morte".

Nos últimos 22 dias perdi, então, meus dois avôs. Uma daquelas coisas que você, por mais que tenha fé, não deixa de questionar. "Precisava disso mesmo, meu Deus? Dois no mesmo mês?".

Agora tenho apenas uma vovózinha, daquelas bem cocotinhas mesmo, e me corta o coração vê-la triste por ter perdido o companheiro de 66 anos de casamento.

Um dos meus avôs, o que ficou viúvo da Dona Alice, faleceu ontem, 4 anos depois da morte de sua amada esposa - a quem de fato foi fiel até a morte. Descansou e foi se encontrar com ela, naquela hipótese que as pessoas tristes insistem em crer para ver se a dor ameniza. E então eu comecei a me lembrar dos últimos momentos que vivi com dois avôs e minha avó que já são falecidos, e percebi algo em comum entre eles: assim como a vida que eu tive perto deles e a sorte de tê-los conhecido e com eles convivido, meus momentos finais ao lado de todos foram bem especiais. Resolvi não confiar na minha memória (apesar de duvidar que me esquecerei deles) e escrevê-los.



1. Há dois meses palavra alguma que fizesse sentido saía de sua boca. O olhar só dizia que ela estava perdida, como nunca estivera em seus 82 anos de vida. Esqueceu-se dos netos, dos filhos, só restou-lhe o companheiro de mais de 50 anos de convívio. Mas todos ao redor se lembrariam sempre de sua voz mansinha e dos pães de queijo pequenos, macios e assados no ponto exato entre o branco e o mais moreninho. Também das gelatinas e dos copos, que ela teimava em encher só até a metade, pro desespero dos netos ávidos por um pouco mais de refrigerante. Todos insistiam em vê-la, mesmo que ela não visse mais ninguém. Em pedir bença, mesmo que ela não conseguisse mais retribuir com "Deus te abençoe".

Um dia, sua casa não era mais um ambiente seguro e foi para o hospital. Todos continuavam insistindo em visitá-la e conversar com ela, mesmo que ela nada respondesse. Um dia, eu, que era uma das netas insistentes, entrei no quarto de hospital da Dona Alice. Cheguei perto e encontrei seu olhar. Percebi sua fraqueza e me enfraqueci, saindo de perto da cama onde ela estava deitada. Uma tia reparou, então, que ela me seguiu com os olhos. Pediu que eu voltasse pra perto dela. Engoli a fraqueza, voltei e parei ao seu lado. Peguei sua mãozinha magra e trêmula, que estava quebrada em decorrência da última queda. Ela olhou para a mão quando a peguei e olhou pro meu rosto. Disse baixinho „bença vovózinha“ e ela respondeu como que suspirando „Deus te abençoe“. Todos no quarto se assustaram e ficaram sem reação. Um momento de lucidez surgiu, em meio a meses de submersao, de Alzheimer. Chorei baixinho e dei um beijo em sua testa. Foi o último dia que eu vi Dona Alice com vida. Dois dias depois, em agosto de 2006, ela nos deixou. Mas minha vida seguiu e segue ainda com sua milagrosa benção final.



2. Aquela tosse insistente persistia por meses. Sua fala raleava e já não reconhecia os seus. A Dona Maria era sua única e maior referência, ainda que ela fosse aquela senhorinha fofa e baixinha. Sua aparência fraca não condizia com aquele senhor que, do alto de seus 80 e tantos anos, ainda insistia em capinar o lote. O câncer de pele no nariz, diagnosticado depois de anos de lida na roça, foi a gota d'água para que os filhos o proibissem de trabalhar no sol. Mas ele morava numa chácara e de lá só saía morto, bradava. E era os filhos virarem as costas que lá ia o seu Zé cuidar das plantas do jardim, no sol. Aceitou, ao menos, usar um chapéu. Tinha disposição de invejar os netos mais novos e, aos nossos olhos, sempre foi forte como uma rocha. Aos 90 anos, quando a anemia tirou dele as forcas que precisava para trabalhar em seu quintal, ele mergulhou no sedentarismo e desde então nunca mais foi saudável. Comia muito pouco, esquecia as coisas, trocava nomes e não queria mais sair de casa. Os netos, que eram muitos, faziam questão de ir pedir bença dizendo "vovô" em seguida, de modo que ele, de antemão, entendesse que eram seus netos, ainda que não soubessem filhos de quem eram, ainda que não lembrasse mais dos próprios filhos. Não esquecia, no entanto, da dona Maria. Um dia, sentei ao seu lado no sofá e perguntei como ele estava. Respondeu que estava bem, mas que tinha que trabalhar. Em seguida, completou perguntando se eu morava em São Paulo. O lembrei de que morei fora, sim, mas na Alemanha, e não em São Paulo. Um tempo depois vovó entrou na sala e ele disse "Maria, ela morou em São Paulo, cidade grande". Em sua cabeça, talvez ainda estivesse morando na pequena Pimenta, Minas Gerais, onde ele nasceu e conheceu Dona Maria. Vovó Maria sorriu e disse que eu tinha morado no estrangeiro. Ele tossiu. Aquela tosse que insistia desde que eu tinha voltado, em agosto do ano passado.

Certo dia, vovó acompanhou vovô Zezé em uma consulta médica. O médico o achou fraquinho demais e resolveu interná-lo, "para facilitar os exames e não ter que ficar indo e vindo". Fui vê-lo no hospital. Sem a dentadura, era quase impossível entender o que dizia, mas não me importava em me esforçar. Entendi que queria sair da cama e dar um passeio. Fomos andando, devagar, carregando a bolsa de soro fincada em sua veia. Demos algumas voltas nos corredores do hospital. Então acabou o horário de visita e ele foi dormir. Vovó veio comigo pra casa, ela precisava descansar para cuidar dele de dia. Algum dos filhos dormiria lá com ele. Ela não queria, "o Zé não fica sem mim", protestou. Mas acabou entendendo que ela, também idosa, precisava descansar. No outro dia, fui apenas buscar minha mãe. Entrei no quarto de hospital e ele dormia, tranquilo, respirando profundo. Dei um beijo em sua testa e fui embora. No outro dia, voltei do trabalho, almocei, senti um taquicardia no peito e a notícia chegou pela boca do meu pai - "seu avô não resistiu".



3. As peripécias como vendedor porta a porta Goiás adentro, ainda nos tempos que Goiânia era Campinas, eram as histórias preferidas do sr. Deocleciano, nome do qual tomei conhecimento apenas aos 15 anos de idade. Ele era simplesmente o vovô Castro, filho de espanhol. Quando pequena, adorava dizer que era da família dona do 5 estrelas Castro's Hotel (coisa que, financeiramente falando, até que cairia bem) ou que era sobrinha neta do Fidel Castro. Vem dele o sobrenome que eu uso para assinar hoje em dia as matérias que escrevo ou os roteiros que fecho como repórter e produtora de jornalismo.

Pequeno e gordinho, tinha a cabeça branquinha e os olhos claros. Um típico vovô, daqueles que você tem vontade de abraçar pra sempre. Era alegre e adorava ter todos os netos em casa. Até que perdeu sua esposa, vovó Alice. Primeiro, para o Alzheimer. Segundo, para a morte. Não escondeu em momento algum sua tristeza e nos anos seguintes, sempre que perguntavam como ele estava, o máximo que falava era um „é, estou indo “. Feliz, sem a Dona Alice, ele não seria mais capaz de ser. Foram quase 5 anos no esquema assistir TV, dar uma volta no quarteirão por dia e receber visita de filhos e netos, numa sobrevida em que nada o animava. Só sorria no Natal, atendendo a pedidos para tirar fotos. Dona Alice morreu e com ela foi sua alegria. Aquilo doía em todos nós. Ultimamente, quando as visitas acenavam que iam embora, ele afirmava que precisava de carona pra voltar pra casa. Não reconhecia aquele apartamento como seu lar. Apesar de não se lembrar do que havia falado há poucos minutos, não havia se esquecido de algumas palavras em espanhol e em inglês, que aprendeu com a filha professora. Às vezes nos cumprimentava com um "how are you"?. Respondíamos e devolvíamos a pergunta e nada mais do que um „well, I'm hm...“ e sinalizava um mais ou menos com as mãos. Teimei em não ensiná-lo que mais ou menos é "so so" em inglês. Queria muito vê-lo happy de novo, mas não consegui.

Fui visitá-lo como sempre fazia aos domingos e, enquanto ele tomava um chá em sua poltrona vermelha, assistindo Domingão do Faustão, reparei em seu relógio. Parecia bem pesado. Perguntei a ele se não incomodava. Ele tirou e disse „pega, é pesado mas eu gosto dele. É bonito“. O relógio realmente pesava.

Fui embora com uma certeza forte de que não deveria falhar em visitá-lo mais. Ele ainda se lembrava de mim e não queria que ele se esquecesse. No outro domingo, porém, tive plantão na rádio em que trabalho e o cansaço me fez preferir ficar quieta em casa. "Durante a semana eu vou". Fui mesmo, mas dessa vez fui vê-lo no hospital, depois que foi internado na madrugada do feriado da padroeira de Goiânia. Pancreatite, e uma dor muito forte, que ele já vinha sentindo, mas os médicos insistiam na teoria de que eram apenas gases. Não era. Fui vê-lo no quarto de hospital. Parecia bem e queria levantar o tempo todo, mas não podia. Comentei com uma tia que sua aparência era boa, e ela me informou que aquilo era o efeito dos remédios fortes que ele estava tomando para cortar a dor. Eu não devia me alegrar pelo que via: era tudo “medicamentosamente forjado“. Antes de ir embora do hospital, cheguei minha mão perto da boca do Castro. Ele me olhou sem entender e eu disse "dá um beijo na minha mão, vovô, o sr nao é um gentleman?". Ele soltou um "aah" de compreensão, beijou minha mão e riu. Um riso que eu nãovia há 4 anos. Retribui com um beijo na testa e saí. No outro dia, agilizei meus trabalhos para poder visitá-lo quinta a tarde, mas na quinta de manhã recebi por telefone, na voz do meu irmão, a notícia do falecimento do meu Castro, 21 dias depois do falecimento do meu vovô Zezé. Vovô Castro foi sepultado no mesmo jazigo que vovó Alice, e minha esperança é de que ele esteja agora matando toda a saudade que ele sentiu dela nesses últimos 4 anos.



Apesar de tudo, sou uma menina de muita sorte. Muitos não chegam a conhecer os avôs/avós, ou moram longe deles, ou não os amam como eles deveriam ser amados. Eu tive a sorte de conviver 18 anos com todos eles, 23 anos com meus avôs e, se Deus quiser, conviverei mais alguns anos com minha vózinha Maria, dando todo apoio do mundo que ela precisa nesse momento. Terei lembranças boas pro resto da minha vida e fico tranquila de saber que todos eles viram filhos e netos crescerem e progredirem na vida. As minhas duas famílias, paterna e materna, são numerosas e nunca faltou amor a nenhum dos quatro. Vi vovó Alice no caixão, mas a imagem do último "Deus te abençoe" é a que ficou mais forte, seguida de sua figura de cabelos dourado escuro, com avental, tirando uma fornada de pão de queijo pra alegria dos netos. No velório dos meus avôs, optei por não ver seus corpos, para manter as imagens aqui narradas mais fortes em minha memória. E elas estão aqui, fortes como nunca. Como diz uma das músicas religiosas mais tristes e mais belas "Não temas, segue adiante, e não olhes para trás. Segura na mão de Deus, e vai."