domingo, 29 de novembro de 2009

Tooooor!

Depois de uma semana complicada, em que a síndrome de intercambista (certa tristezinha que muitos intercambistas têm quando percebem que estao realmente longe de casa e de todos que gostam, e que precisam se virar sozinhos pois ninguém vai se virar por eles, etc etc) bateu com forca, guardei minhas esperancas de melhorar o meu humor para o jogo no Allianz Arena. Eu gosto de futebol, e quem me conhece sabe disso. Nao sou fanática, mas acompanho com prazer. Pra quem nao sabe, Allianz Arena é um estádio que foi construído pra ser uma das sedes de jogos da Copa do Mundo que rolou aqui na Alemanha em 2006. Hoje o estádio é a 'casa' do Bayern de Munique, da primeira divisao do futebol alemao, e também do 1860 Munique, da 2° divisao.
Eu ainda nao sabia desses detalhes, mas eu sabia que, uma vez que eu iria morar um ano perto de Munique, com certeza visitaria aquele estádio ultra moderno que eu via na TV em 2006, que se coloria de noite com luzes azuis e vermelhas. Eu tinha que fazer isso por vontade própria e em nome de todos os meus amigos fanáticos por futebol (que nao sao poucos) que gostariam de fazê-lo.
Quando cheguei na Alemanha, percebi que o David, que mora comigo, gosta de futebol (Sao Paulino!!) e já deixei avisado que queria ir no Allianz Arena. Ele disse que jogo do Bayern de Munique ia ser complicado, porque os ingressos sao caros (algo em torno de 50 € pra cima), mas que se eu quisesse, ele me acompanharia com prazer em um jogo do desconhecido München 1860, o time que ele torce, da 2° divisao. Por mim, tudo bem! O importante era conhecer o Allianz. (E na época, meu querido Atlético Goianiense ainbda era da 2° divisao do brasileiro, portanto, sem preconceitos!) Ele deu uma olhada no calendário e disse que em Dezembro seria bacana!
Dois dias depois, vi o Allianz pela primeira vez, a caminho da Oktoberfest. Imponente, foi o que eu achei à primeira (e rápida) vista.
Um mês depois, almocei com um dos amgos do David, o Martin, no Mensa, o restaurante de universidade. Nos encontramos por acaso e eu comentei alguma coisa sobre futebol. Ele explicou que escrevia para o Mercur, um grupo midiático de Munique, na parte de esportes. Eu comentei, sem muitas pretensoes, que queria ir no jogo Argentina X Alemanha, amistoso previsto pra marco do ano que vem. Ele disse que seria complicado conseguir ingressos, mas talvez conseguiria tickets mais baratos... Gostando do rumo do papo, comentei que queria mesmo era conhecer o Allianz Arena, e expliquei meus planos de ir com o David em um jogo do München 1860. Ele logo se ofereceu pra conseguir ingressos de graca, e claro, eu aceitei.
Uma semana depois a mensagem no Facebook: dois ingressos gratuitos para o jogo do dia 29 de novembro contra o Fortuna Düsseldorf, uma espécie de clássico da 2° divisao. Comentou que ia tentar conseguir mais um ingresso, porque queria ir também. Toda empolgada, encontrei o David depois do almoco e contei as novidades. Mas aí veio o balde de água fria (bem recorrente na minha vida, por sinal): ele estaria na Argentina visitando a irma.
Fudeu, pensei. Mas em seguida ele me acalmou, dizendo que achava que o Martin nao se importaria de ir comigo. Eu nao tinha tanta certeza, afinal, nem éramos tao amigos assim... Mas torci pra que o David estivesse certo. E ele estava. Mandei uma mensagem pro Martim e ele topou ir sem problemas. Aproveitei e pedi um ingresso a mais (oferece a mao e eu peco o braco inteiro) pra Helena ir junto. Ele prometeu tentar.
Na quinta feira passada, estava tranquila no meu quarto, de pijama e óculos de grau, quando a campainha tocou e a Laure disse que era pra mim. Era muito cedo pra Helena já vir pra cá e irmos pra night, mas eu achei que fosse ela mesmo assim e fui recebê-la. Era o Martim. Eu queria enfiar minha cara num buraco, mas tudo que eu consegui dizer foi 'Ops, ich trage mein Pijama!!' (Opa, eu estou de pijama) Ele fez cara de que nao se importava e explicou que nao tinha conseguido outro ingresso, mas que talvez conseguiríamos no dia, e que se nao conseguissemos, nao devia custar mais que 10€. Marcamos de nos encontrarmos 9:34 (ele gosta de números quebrados) na estacao de trem no domingo. Corri e convenci a Helena, que é gaúcha, vegetariana e nao gosta de futebol (mas eu gosto dela mesmo assim) a ir também. Nao foi tao difícil.
A tristeza bateu na sexta e no sábado, e eu me agarrei à expectativa do jogo pra sobreviver (drama). Apesar de empolgada, tive que vencer a preguica que eu tenho sempre ao acordar cedo, e tive que tomar um pouco mais de coragem, porque o termômetro marcava 3° e eu podia ver um pouquinho de neve que caiu a noite ainda nas folhas.. Frio do cao!!
Cheguei na estacao 9:37 (o charmoso atraso brasileiro), compramos o ticket e viajamos felizes e sonolentos pra Munique.
Lá chegando compramos um pedaco de pizza cada, de um italiano que ficava cantando enquanto cortava os nossos pedacos. Eu e a Helena ficamos parecendo duas entregadoras de pizza, esperando na porta do prédio da Mercur (a empresa de mídia) enquanto o Martin corria pra buscar os nossos tickets.
Depois pegamos o metrô rumo ao Allianz, e à medida que mais torcedores iam entrando com suas camisas azuis ou vermelhas, mais empolgada eu ia ficando! Quando ouvi torcedores cantando, láááá no outro vagao do trem, me animei mais ainda!
Descemos já com uma multidao de torcedores, e alguns metros depois, logo que saímos da estacao, lá estava ele... Lindo, moderno e mais imponente ainda.


Pra provar que eu realmente estive lá!

Bom, a vontade que eu tinha era sair correndo e entrar lá logo, pra ver como era dentro e comparar com o Serra Dourada, o Pacaembu e o Morumbi, que sao os estádios que eu conheco. Mas tinhamos que comprar o ingresso a mais, e a fila nao era tao pequena assim, apesar de ser extramemente organizada...

Enfrentamos a fila (leeeeenta), compramos o ticket por 15€ e fomos entrar no estádio, meu coracao palpitando horrores, e eu nem sabia exatamente porquê. Bebi minha água correndo (nao pode entrar com garrafa no estádio), passei meu ticket no leitor de códigos de barra, fui revistada com toda educacao do mundo, e entrei no estádio.

Já dentro dos portoes do Allianz

Seguimos em direcao ao portao 102, onde ficaríamos na tribuna da imprensa. Sem confusao nenhuma à vista. Logo de cara já me impressionei com a limpeza do lugar: impecável! Nenhum cheiro de xixi ou coisa do tipo. Depois me impressionei com a qualidade da lanchonete (sanduíche, pizza, doces, todas as bebidas possíveis, inclusive quentao, que os alemaos sao viciados e que chamam de Glühwein). Pra comprar coisas, você tinha primeiro que comprar um cartaozinho e nele inserir créditos. Tinha uma maquininha dessa em cada portao. Muito organizado, eficiente e tranquilo. Mas o que mais me impressionou mesmo foi o cuidado que eles tem com pessoas com deficiência física. Vi 3 cadeirantes por lá, todos entraram facilmente no estádio e se posicionaram em lugares reservados a eles, muito bem localizados. Exemplar mesmo.

Espaco reservado aos cadeirantes

No espaco reservado aos jornalistas, nao tinha muita gente trabalhando...



E enfim o estádio por dentro. Moderno, com todas as cadeiras (de todas as áreas) almofadadas, espaco grande nos corredores (ninguém precisa levantar pro outro passar), luzes acesas pela falta de luz do sol, apesar de ser só 1:30 da tarde. De um lado, a torcida da casa, azul. Do outro, a torcida vermelha, dos visitantes. Nao tinha muita gente, mas o suficiente pra eu achar tudo muito bonito. Todo mundo devidamente empacotado por causa do frio. Nao nos sentamos nos lugares marcados (me senti tao criminosa por isso, sei lá, alemaes sao em geral MUITO certinhos, parece que fazer esse tipo de coisa aqui é mais grave que o normal, mas como a idéia foi do Martin, eu fiquei quieta), mas os lugares que pegamos eram realmente bons! (Echt!) Aí eu dei uma olhada pro campo e... CARAMBA, que pequeno! Hahaha! Eu achei TAO estranho, porque ele parecia tao pequenininho... tao campinho de jogar pelada, sabe? Sei lá. Eu nao sei exatamente as dimensoes de um campo de futebol, mas eu tenho CERTEZA que os do Brasil (pelo menos os que eu vi) sao maiores. Estranho demais. Como assim uma Copa do Mundo foi disputada ali naquele 'campinho'? Aquilo nao condizia com toda a modernidade e infra estrutura do estádio, e eu fiquei meio decepcionada por isso, mas pouco depois os times comecaram a entrar em campo, posaram pra foto inicial e comecaram a partida, e eu já nao estava tao incomodada mais com o tamanho do campo. (E o Martin mandou eu parar de tirar foto e prestar atencao no jogo)

Pessoal entrando em campo


Vídeo feito momentos antes do início da partida


Eu achei o mascote do 1860, o leaozinho que também é símbolo de Bayern, muito foto! E durante toda a partida, eles deixam um bichinho de pelúcia em forma de leao ao lado do gol. (Momento 'menininha' do comentário). O lembrete do Martin de que os dois times nao eram lá essas coisas, e de que o jogo provavelmente seria sehr schlecht (muito ruim) nao me intimidou. O que me intimidou mesmo foi o fato de eu nao saber, de jeito nenhum, como me expressar em alemao. Eu queria gritar 'vaaai vaaai, tiiiira a bola meu fiiiiilho, ôôôô sua aaaanta, até eu fazia esse' mas nao tinha a menor ideia de como falar isso em alemao! Fiquei com um nózao na garganta. Desabafei com o Martin sobre isso e ele disse, rindo, que eu poderia tentar, e que bastava ter paciencia. Mas nao deu certo nao. Na hora que o 1860 fez o primeiro gol, eu esqueci que gol em alemao é tor (quem acompanhou a copa de 2006 deveria saber disso) e gritei gol mesmo. E gritei com tanta emocao que parecia que eu torcia pro 1860 desde criancinha! Fiquei rindo de mim mesma ao constatar o excesso de efusividade. A Helena ficou me olhando, sem entender. Mas eu nao era a única efusiva.. ao contrário do que eu temia, os alemaes conseguem esquecer um pouco a ordem (mas nao muito) e gritar também, assim como conseguem falar palavroes uns pros outros (a torcida do 1860 cantava Scheißedusseldorf, ou seja, Dusseldorf de merda) Tá, nada como um 'Ei, Corinthians, vai tomar no c*' típico de sao paulinos como eu (o exemplo serve para Goiás X Vila, Flamengo X Fluminense, etc...) mas pra alemao já é um grande avanco!! Aí o 1860 fez outro gol, que eu perdi pq tava falando pra Helena que a câmera de TV parecia um jet ski (sonsa). Mas viva os teloes do Allianz, que reprisaram o lance! Aliás, eu tive um momento de euforia enorme quando o juiz deu um cartao amarelo, nem lembro pra quem, e apareceu no telao o desenho de um carrinho, buzinando, que estacionava e o motorista colocava o cartao pra fora! MUITO legal! Legal também é a interacao que rola entre o narrador do estádio e a torcida! Nos gols ele falava o primeiro nome do jogador e a torcida respondia com o segundo nome! Bacana demais! Tinha um jogador brasileiro na equipe, o Marcos Antonio, que pelo que eu li na internet jogou no CSA e no Corinthians, e está emprestado por um ano pro 1860. Vamos combinar, ele nao joga muito bem nao, tanto que foi substituido ainda no 1° tempo.
Aí rolou o intervalo. Hora do teste do banheiro. Vários banheiros espalhados pelo estádio, entrei no primeiro e vi uma fila pequena, muito bem organizada, o banheiro extremamente limpo, nem uma gota de xixi na tampa da privada, papel higiênico aos montes, sabonete líquido e secador de maos. Perfeito!
Depois voltei pro meu lugarzinho privilegiado e o segundo tempo comecou. Comentei com o Martin que eu estava dando sorte pro time, e 5 minutos depois de falar isso, o Dusseldorf fez gol. Hahaha. Incrível!! Mais um tempo depois, outro gol do Dusseldorf. Aprendi a nunca mais falar que eu dou sorte pra nada, pq é automático, é falar e a coisa mudar. Mas esses gols me fizeram observar um fato interessante. Na fileira da frente tinha um cara com umas 4 criancas. Eles torciam pro time adversário, pro Dusseldorf. Do lado dele, um cara torcia pro 1860. Rolando o maior respeito do mundo ali! Achei bacana mesmo! Também achei bacana o jeito que o narrador do estádio narra os gols dos visitantes. Enquanto nos gols do time da casa ele apronta um escândalo (mas o 'toooooooooor' nem prolonga tanto quando o 'goooooooool' no Brasil), quando o Dusseldorf fez o gol ele disse secamente: Tor do Dusseldorf. Fulano de tal. PONTO. Dava pra sentir a frustracao na voz do cara! Achei engracado demais! Curioso também é a loucura dos para médicos. O cara nao pode tropecar que eles já vao atender, no Brasil eles sao bem mais contidos...
Aí o jogo acabou! Hunf. Passou muito rápido, fato.
A torcida ainda deu uma cantada, bateu muitas palmas, apesar do empate. No fim do jogo tirei uma foto em homenagem à pessoa que me deu a camisa que eu estava usando, que por sinal, é também uma das pessoas que mais me motivou a estar lá.

E o fato de eu ter usado a camisa do Sao Paulo lá e isso nao ter dado muita sorte pro time hoje (aliás, zero de sorte, convenhamos) nao ofusca o objetivo principal: a homenagem e a representacao. Usei (e continuo usando) com muito orgulho!

Conclusoes depois de assistir a um jogo no Allianz Arena: o Brasil, se quer mesmo sediar uma boa copa, tem MUITO o que aprender em relacao à arquitetura e organizacao. O estádio é IMPECÁVEL em todos os sentidos, só o tamanho do campo que me decepcionou um pouco, mas tudo bem...
Alemaes sao pessoas realmente educadas, e isso é bom, mas confesso que faltou calor humano.. Apesar de ter me divertido MUITO, de ter amado o estádio e a seguranca que a gente sente estando lá, faltaram duas coisas: a ALEGRIA e a vibracao do brasileiro, que SÓ os brasileiros têm e sabem transmitir, e que faz, mesmo, muita falta e muita diferenca.
Do lado de fora do estádio, na saída, percebi que a 'roupa' do Allianz parece plástico bolha gigante (morri de vontade de apertar):



Queria agradecer aos meus companheiros de jogo hoje, o Martin pelo esforco de conseguir os ingressos e se dispor a passar o dia passeando com duas brasileiras (e ainda queria pagar tudo, coisa que eu e a Helena nao deixamos, claro). E à Helena, que nem de futebol gosta, e nunca tinha ido a um estádio! Obrigada por ser a companheirona que você é! :)

Helena, eu e Martin

Depois ainda rolou uma última foto na frente do estádio, que eu espero que nao seja de fato a última (quem sabe um jogo do Bayern ou até mesmo o amistoso Argentina X Alemanha em marco?)



ps: ainda tive o prazer de ver, na volta, torcedores dos dois times conversando amigavelmente, lado a lado, dentro do metrô. (O guri em pé torce pro 1860, o sentado do lado dele estava bêbado e torce pro Düsseldorf)


sábado, 21 de novembro de 2009

"Nunca mais"

Certas coisas simplesmente têm de ser feitas, mesmo que soe clichê. Uma visita a um campo de concentracao da Alemanha nazista é uma dessas coisas quase obrigatórias para quem mora por aqui, permanentemente ou nao. Apesar do esforco coletivo que os alemaes fazem para mudar sua imagem mundo afora, o episódio do III Reich vai ser sempre parte de sua história, uma parte triste, muito triste, mas que nao pode simplesmente ser negada, e nem deve ser esquecida. Sabendo disso, assim que cheguei na Alemanha e fiz algumas amizades, combinei visitar o campo de concentracao de Dachau, que fica uma estacao de trem antes de chegar em Munique. Eu queria ir para Auschwitz, o mais famoso deles, mas ele fica na Polônia, enquanto Dachau fica há uma hora de trem de Eichstätt.
Eu sabia que nao seria um dia divertido. Sabia que seria um passeio mórbido e triste, mas sentia a necessidade de fazê-lo. Minha mae nao reagiu muito bem quando soube que, no dia seguinte, tomaria o trem rumo à Dachau com uma amiga brasileira e duas belgas. 'Tem certeza que quer ver isso Ana?' Sim, eu tinha certeza.
A certeza nao estava tao absoluta assim quando acordei às 8:30 da manha. Cansada e ainda ressaquiada da festa na qual tinha ido dois dias antes e que tinha me detonado total, pensei seriamente em mandar uma mensagem pras meninas dizendo que nao iria. Olhei pela janela, a neblina estava ainda mais densa e branca do que de costume. Nem sinal de sol. Me senti um pouco mais desmotivada, porque o cansaco ia juntar com o clima nebuloso e a atmosfera de tristeza e eu tinha certeza que seria um dia depressivo. Mas a sensacao de obrigacao falou mais alto. Eu nao poderia perder essa oportunidade, e talvez já nao encontrasse depois quem topasse ir comigo um outro dia. Sozinha eu sabia que nao encararia. Tomei um banho rápido, um iogurte, juntei umas frutas e água na bolsa e saí correndo pra estacao de trem, aonde encontrei as meninas já preocupadas com meus 5 minutos de atraso. No caminho, uma sensacao estranha... é estranho saber que você está indo de encontro a algo chocante. E está indo por querer. Nao sei explicar. Mas a viagem de uma hr e poucos passou rápida. Chegamos à cidade de Dachau, descemos na estacao, constatamos mais uma vez a hegemonia do Mc Donalds no mundo (era a lanchonete que tinha na estacao), e pegamos o ônibus lotado de turistas do mundo todo que levava ao campo de concentracao em si. Nao esperava que ele ficasse no meio da cidade. Na verdade, a cidade cresceu em volta dele, e constatar que existem casas cujas janelas dao de cara para o pátio do campo de concentracao me causou o primeiro arrepio de todos os demais que eu sentiria naquela tarde. Como pessoas conseguem morar ao lado de um ex campo de concentracao nazista?

Na entrada, ao lado do ponto de ônibus, uma reflexao escrita em alemao e inglês.

"Dachau - o significado desse nome nunca será apagado da história da Alemanha. Ficará por todos os campos de concentracao que os nazistas estabeleceram em seus territórios."

Fizemos um breve piquenique antes de entrarmos de fato no memorial. Depois de comermos, fomos para a sala de informacoes, que fica ao lado de uma livraria temática. Um espaco moderno, com portas automáticos e arquitetura arrojada. A natureza do lugar era também muito bonita. O clima, ao meio dia, estava agradável, ensolarado e nao muito frio. Entre as opcoes de guia, optamos por um aparelho de audio, no qual digitamos um número, apertamos play e ouvimos a história do que estamos olhando. Moderníssimo. Apresentamos à simpática senhora do balcao de informacoes as nossas carteirinhas estudantis e pagamos 2€ cada. Deixamos documentos como garantia de que estaríamos de volta com os aparelhos até às 5 da tarde, horário de fechamento do memorial. Escolhi o áudio em ingles e recebi os panfletos com mapas do local e o número dos guias de áudio. Para chegar ao portao do campo de concentracao, precisamos andar um pouco pelo caminho de pedrinhas brancas e àrvores bonitas. A atmosfera, por incrível que pareca, é de paz.
Atravessamos a pequena ponte que fica sobre um riacho que cerca toda a extensao do campo e chegamos ao portao, onde está escrito ARBEIT MACHT FREI, ou seja, o trabalho liberta.

Dachau era denominado como campo de trabalho, nao de extermínio.
A primeira impressao: é um lugar, antes de tudo, bonito. Existe sim uma atmosfera de seriedade no local, mas isso porque todos que estao ali sabem onde estao... Mas se ninguem avisasse, o local, à primeira vista, poderia ser encarado como uma escola enorme. Os prédios remanescentes sao brancos, extensos, e de apenas um pavimento. Alguns painéis com fotos e explicacoes sao espalhados diante de monumentos e na entrada dos prédios. Em um muro, outro pensamento escrito em várias línguas (mas nao em português):

" Que o exemplo daqueles que aqui foram exterminados entre 1933 e 1945 por resistirem ao nazismo ajude a unir os que vivem em nome da paz, da liberdade, e do respeito ao semelhante."

Mais adiante, um monumento enorme em metal escuro representa o sofrimento daqueles que passaram por Dachau. O aparelho de áudio me esclareceu que o idealizador do monumento foi um dos sobreviventes de local.



À direita, um monumento na parede revela vários triângulos coloridos de ponta à cabeca. Nao entendi o que significavam. Pouco mais à esquerda, em outro painel multilinguístico, lê-se:



"NUNCA MAIS"

Entramos no museu, que fica no prédio da administracao. Cerca de 6 salas diferentes sao lotadas com painéis com imagens, trechos de depoimentos, fotos e documentos reais de pessoas que por ali estiveram, prisioneiras ou militantes nazistas. Em cada sala, uma explicacao via áudio. Os painéis eram distribuídos por temas e contam a história de Dachau desde a sua construcao até o seu fechamento. Dachau foi o primeiro campo de concentracao construído na Alemanha, o único que manteve-se em funcionamento durante os 12 anos seguidos de duracao do Regime Nazista. Ficou famoso pela rigidez de disciplina no local, tanto que durante um ano foi evacuado para dar lugar a tropas de guardas de outros campos de concentracao, que foram aprender 'métodos de exigência de disciplina dos presos' com os guardas de Dachau. A primeira informacao estarrecedora de muitas outras: a chegada no campo de concentracao. Cada caminhao carregava 90 presos, 45 de cada lado. Um espaco no meio deveria permanecer livre para que os dois guardas da SS vigiassem o local. O cheiro de urina e fezes era insuportável. Muitos presos morriam durante a viagem, e seus corpos permaneciam no caminhao até a chegada em Dachau. Contagens diárias eram feitas no pátio do campo, sobre quaisquer condicoes climáticas. Quando algum preso morria, seu corpo era carregado pelos companheiros para a contagem também. Quando a contagem nao batia, alguns presos eram torturados e todos eram obrigados a permanecer horas de pé até que se esclarecesse o ocorrido.
Em uma das salas, cada painel mostrava o perfil dos presos. Judeus, homossexuais, presos políticos, estrangeiros, opositores do regime nazista em geral. A categoria que mais me chamou a atencao foi a de 'presos incomuns'. Pela descricao, eram pessoas que nao se enquadravam em nenhuma das outras categorias, mas eram presas 'preventivamente', pois poderiam vir a oferecer riscos ao regime nazista. Uma explicacao nao muito convincente, ou seja, pessoas que eram presas simplesmente porque os guardas queriam prendê-las. Nao iam com a cara delas, simples assim. Cada categoria de preso tinha no uniforme um símbolo que os identificava: triângulos coloridos. Agora sim eu entendia o significado do monumento do lado de fora. Os homossexuais, por exemplo, tinham o triângulo rosa pink (e essa foi a única cor que eu consigo me lembrar agora). Em um painel que mostra fotos dos dirigentes de Dachau, um trecho do que um deles disse aos prisioneiros que chegavam:

"Aqui vocês nao tem direito nenhum, nem dignidade nenhuma, e serao tratados exatamente como o bando de merdas que vocês sao"

Os presos eram obrigados a cumprir jornadas de trabalho pesado de cerca de 12 horas diárias. Aqueles que por algum motivo nao conseguiam trabalhar eram os primeiros a serem mortos. Tratados como inúteis, recebiam menos comida do que os outros (se é que a sopa que eles comiam poderia ser chamada de comida). Os doentes recebiam precário tratamento médico. Muitos simplesmente eram deixados morrendo à míngua, o que explica a quantidade assustadora de fotos de pessoas cadavéricas. À medida que a cronologia dos fatos ia avancando, mais eu me aterrorizava. As imagens e historias ali escritas ou narradas eram tao chocantes que eu cheguei a forcar certa apatia, tentei pensar que tudo era obra de ficcao. Essa ilusao proposital me ajudou a suportar o turbilhao de informacoes desconcertantes. Mas nao havia como nao concordar com o pensamento de um jornalista norte americano que visitou o campo de concentracao (nao entendi como ele foi autorizado a entrar):

"É impensável que, no século 20, em pleno coracao da Europa, acontecam sob os olhos do Estado barbaridades como essa"

Foi como um chute no estômago que me lembrou que todas aquelas cenas eram reais, e que tinham acontecido há menos de 70 anos. Pensei na quantidade de velhinhos que tem aqui em Eichstätt, e na Alemanha como um todo, e quantos deles teriam vivido naquela época, teriam ido para esses campos ou teriam visto seus pais irem...
Um dos painéis que mais me chocou foi o de experimentos científicos. Os presos eram cobaias de diversos testes com medicamentos desenvolvidos para uso na guerra. Numa sequência de fotos, um homem tem injetado na veia uma substância que causa a formacao de um coágulo cerebral. Para alguém que já enxerga com reservas o teste de medicamentos em animais, ver aquelas fotos de pessoas sentindo dores extremas e sendo deixadas morrendo à míngua praticamente me paralisou.
No painel que mostrava o trabalho dos presos, descobri que a maioria ajudava na cofeccao de armas e municao para a guerra. Os próprios presos tinham que construir as armas e municoes que ajudariam os nazistas a propagar seu regime de ódio e racismo. Tive um impulso de ler todos os livros possiveis com relatos de sobreviventes, para entender o que se passava no psicológico deles. É inimaginável. Às 2 horas assistimos a um documentário sobre Dachau, de 20 minutos de duracao, áudio em inglês. Foi a parte mais difícil do passeio.

Eu já vi muitos filmes sobre o tema nazismo, mas nenhum deles chegou nem perto de me tocar tanto quanto esse documentário me tocou. Talvez porque os filmes que eu assisti eram todos, apesar de baseados em fatos reais, ficcao. Ficcao porque as imagens nao eram reais, eram reproducoes. Assistir a montagens de fotos reais e a cenas gravadas durante o funcionamento do campo de concentracao é MUITO diferente. O desespero ou até mesmo a apatia nos olhos de quem já sofreu tanto que nem consegue mais se desesperar sao chocantes. Eu nao chorei. Mas eu nao sei medir a profundidade da minha tristeza. Estava chocada demais pra chorar. Refleti que a única coisa em toda a minha vida que me fez me sentir mais triste do que enquanto eu assistia ao documentário foi ver a decadência da minha avó durante dois anos até a sua morte, em 2006. Ela tinha Alzheimer. Só ver uma pessoa que você ama se esquecendo de si própria e do mundo ao seu redor, pouco a pouco, pode ser mais triste do que ver centenas de pessoas morrendo à míngua, pilhas de corpos cadavéricos e nus sendo transportados em carrocas e jogados em valas comuns, quando a quantidade de mortos era tanta que o crematório construído no local nao tinha mais capacidade. Imagens de doentes, pessoas catando piolhos nas próprias pernas e a imundície do local eram combinadas com a narrativa cronológica dos acontecimentos. Gracas ao documentário, descobri que existia uma câmera de gás em Dachau, mas que ela nunca havia sido usada, e nao se sabe o motivo. Quando as luzes se acenderam, um silêncio palpável tomou conta da sala, pessoas demoraram a se levantar. Deviam estar, como eu, tentando se recompor depois de 20 minutos de choque e imagens reais. Nao vou me esquecer do rapaz catando piolhos na própria perna, do monte de gente cercando um barril em busca de uma colheirada que fosse de sopa e do relacoes públicas do regime nazista explicando em um discurso que os campos de concentracao ajudariam a erradicar da Alemanha todos aqueles que nao tivessem o sangue puro, que tivessem crencas 'duvidosas' e comportamento 'inadequado'. Usou o termo Darwinismo Social e preservacao da 'espécie pura' e foi aplaudido ruidosamente por uma platéia de ignorantes. Depois do filme, mais alguns painéis. Cartas de feliz dia das maes e votos de feliz ano novo, escritas pelos presos. Poemas. Existia uma orquestra dentro de Dachau, que formou-se ilegalmente e, quando foi descoberta, foi obrigada a tocar nas sessoes de tortura pública que presos rebeldes sofriam, pendurados pelos pulsos em ganchos no teto; deitados em um móvel de madeira, em que o preso fica 'de quatro' e apanha nu com vara de bambu ou quando eram obrigados a entrar em banheiras com água congelante, para testes de hipotermia. Um dos painéis que mais me emocionou foi o paiel da solidariedade. Fotos de presos ajudando uns aos outros, cuidando uns dos outros, bilhetes de apoio... formacao de grupos secretos de oracao, de debate literário e até a construcao de uma biblioteca clandestina. Os guardas nazistas nao pareciam muito inteligentes, o que possibilitava a formacao de grupos de intelectuais presos. Vizinhos do campo de concentracao tentando passar comida pelas cercas. Depois do soco no fundo do estômago, a ponta de esperanca na humanidade, devido ao sentimento de solidariedade ali expressados, mesmo quando a sua situacao precária nao era diferente da do outro. Uma das partes da exposicao que me chamou a atencao também foi um acervo de propagandas e de notícias e recortes de jornais sobre Dachau. A imagem que se fazia do lugar era de um local onde os 'impuros' poderiam se 'desculpar' pelo pecado de serem 'impuros' trabalhando. E muita gente que estava do lado de fora realmente nao sabia o que se passava ali. Eu vi fotos de esqueletos humanos nus tomando banho amontoados uns nos outros. Eu vi fotos de corpos amontoados uns sobre os outros. Eu vi poemas, músicas e relatos de tentativas de manter viva um pouco de cultura. Eu vi fotos de guardas nazistas sorrindo diante de corpos estilhacados. Eu vi o corpo de um homem morto eletrocutado na cerca elétrica tentando fugir. Eu vi foto de um homem comendo uma flor. Eu vi foto de criancas e mulheres grávidas em meio à fome, à imúndicie, ao descaso, à desonra. E eu sei que eu nao vi nem metade do que aconteceu ali, porque 200 mil pessoas passaram por aqueles portoes, e até hj nao se sabe ao certo quantas pessoas ali morreram. O campo de concentracao de Dachau parou de funcionar gracas a uma investida de tropas norte americanas. Revoltados com o cenário que encontraram, os soldados norte americanos protagonizaram o chamado massacre de Dachau. Mataram muitos dos guardas que se encontravam no local, por revolta. Alguns moradores das redondezas ainda acreditavam no que diziam as propagandas nazistas, apesar de muitos já terem comecado a se questionar sobre o mau cheiro, sobre a fumaca negra e fedida, que saía constantemente da chaminé do que eles nao sabiam que era um crematório. Quando os guardas americanos libertaram os sobreviventes, obrigaram os moradores da cidade à olharem com os próprios olhos todos aqueles corpos amontoados e toda aquela podridao. Outra cena do documentário que nunca vou esquecer: uma senhora chorando sem parar por ter acabado de ver uma pilha de corpos amontoada em uma sala (sala na qual eu entrei). Acredito que ela chorava nao 'só' pela tristeza do fato em si, mas pelos anos em que viveu ali ao lado, ignorante de toda essa tragédia. 'Como?', ela devia se perguntar. A mesma pergunta que eu me fiz várias vezes durante o dia. Depois de sairmos do museu (que é enorme e nos tomou a maior parte do tempo), fomos visitar o único pavilhao que nao foi derrubado pelos guardas norte americanos. Eram 34 no total, restaram 2, apenas um aberto à visitacao. Ali era aonde os presos dormiam. Quando entrei no quarto e vi aquele amontoado de madeiras que deveriam ser camas, disse pra Helena: parecem caixas de uma gigantes umas sobre as outras. O banheiro consistia em duas pias enormes em forma de fontes, para uma quantidade indizível de presos, e 8 ou 9 privadas, uma de frente à outra, divididas em duas fileiras. Privacidade? Nenhuma. Depois fomos ao crematório, aonde ficava também a câmara de gás que nunca fora ativada. No caminho, o sino da sinagoga construida em memória aos judeus soou. A atmosfera pesou com o badalar dos sinos. Chegando no crematório, me surpreendi com um jardim LINDO. A beleza da natureza do local ajuda a apaziguar um pouco o choque depois de tanta informacao, mas ao mesmo tempo nos faz questionar: como tudo isso aconteceu aqui? As belgas já tinham se adiantado e nos esperavam sentadas em um banquinho do lado de fora. 'Como é lá dentro?' - 'Terrível'. Preparada pro pior, entrei com a Helena. Entrramos na sala onde ficava a câmara de gás. Como sabia que ela nunca tinha sido acionada, nao me emocionei tanto. Mas uma coisa me chamou atencao. Haviam pequenas janelas de vidro. Será que os guardas pensaram em ficar olhando a morte lenta das pessoas por aquelas janelas? Qual era o sentido da existência daquelas janelas ali? A próxima sala era a de 'espera', onde os corpos esperavam para ser cremados. Nao os que vinham da câmara de gás que nunca funcionou, mas os que vinham dos dormitórios, doentes, famintos, congelados. Pisar no mesmo chao em que milhares de corpos foram jogados me fez arrepiar. Na sala de crematório, à primeira vista, me senti como se estivesse numa pizzaria. Cinco fornos gigantes, com chaminés gigantes, construídos em tijolos. Claro que a imagem da pizzaria me veio à cabeca como um mecanismo de defesa pra esquecer o que eles realmente assavam ali. Quando lembrei, tive ânsia de vômito. Na última sala, mais um espaco para os corpos se amontoarem, principalmente quando a capacidade das caldeiras nao era suficiente, o que nao era raro. Tinha alguma coisa nos poroes, mas turistas nao têm acesso. Talvez seja melhor nunca saber mesmo.

Na saída, um caminho lindo, coberto com àrvores e flores, e de 5 em 5 metros, escrituras em pedras:

"Em homenagem aos anônimos que aqui foram enterrados. Que sua memória nao seja esquecida"

Na frente de uma àrvore majestosa:

"Local de fuzilamento"

Um pouco mais à frente:

"Canal por onde escorria o sangue dos mortos"


Ao escrever agora tudo isso, e recapitular o que vi, nao consigo pensar no que escrever. Assim como, na hora, nao conseguia pensar no que dizer ou pensar. Apenas choque. Apenas silêncio. O meu, o da Helena, o da Lotte e o da Jolien. Nossos silêncios disseram tudo. Nada mais, depois de tudo que vimos, precisava ser dito naquele momento. Mas as palavras escritas em um dos diários achados em Dachau relatam:


"Se eu sobreviver, farei de tudo para nao deixar morrer a memória de todos que aqui estao morrendo. Eles nao podem morrer, nao podem morrer. Se um dia eu nao me lembrar mais deles, e de tudo isso que vivi, nesse dia eu mesmo estarei morto. É minha obrigacao fazê-los, de algum modo, sobreviver"


Nao sei exatamente o que realmente toda essa gente passou. Hoje tive apenas uma idéia um pouco mais clara, assim como quem leu esse meu relato nao tem exatamente idéia do que eu senti. Só quem viveu aquilo pra saber. Só quem esteve em um memorial de um campo de concentracao sabe o que se sente ali. Nao, nao é o clichê que eu disse que achava que era no início desse relato. Por isso eu afirmo que, quem tem a oportunidade, deve ir a um lugar desses. E depois de estar lá, me senti também na obrigacao de, de algum modo, ajudar a fazer todos aqueles seres humanos que ali morreram JAMAIS serem esquecidos, na esperanca de que algo parecido JAMAIS volte a acontecer.


Presos saudando as tropas americanas no dia de sua libertacao

ps: quem quiser ver mais imagens, existem vídeos no Youtube e fotos no Google Imagens, algumas pensei em colocar aqui, mas sao muito chocantes. Basta digitar Dachau em ambos os sites.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Eichstätt, a Salem's Lot alema

Já comentei aqui sobre as matérias interessantes que estou pegando na KUEI. Uma delas, que me deixou empolgadíssima no momento em que a descobri, foi a disciplina de Vampiros na Cultura Americana, ministrada em inglês, que trata sobre a análise de filmes, contos, livros e tudo que é relacionado a vampiros. É um tema que sempre me fascinou, desde que eu assisti pela primeira vez, com uns 7 ou 8 anos de idade, ao filme Entrevista com o Vampiro. Pode soar precoce, mas eu me senti fisicamente atraída por esses seres, o que é facilmente explicado pela conotacao sexual que Hollywood deu a eles, retratando-os sempre como criaturas anormalmente bonitas, poderosas e misteriosas. É um tema que me agrada desde entao. A disciplina faz parte do núcleo de estudos anglo-americanos da Universidade, mas é aberta a todos os alunos interessados.
Pois bem, a primeira das leituras foi o clássico Drácula, de Bram Stoker. Li a versao online em português. Adorei a leitura, até por saber que a maioria de tudo que se cria hoje relacionado a vampiros é inspirado de certa forma em Drácula. Stoker pesquisou 7 anos em bilbiotecas de vários países sobre o mito de Vlad, rei romeno que tinha como hobby preferido empalar pessoas (enfiar uma estaca nelas e deixá-las penduradas, morrendo lentamente) e beber seu sangue. Ele chegou a fazer uma 'floresta' de corpos empalados. Seu sobrenome era Drácula, daí o nome. Outros mitos e folclores também ajudaram na construcao dos poderes e das fraquezas de Conde Drácula. Stoker juntou tudo e criou um personagem que tem como principais poderes o de hipnotizar pessoas e animais noturnos; se transformar nesses animais; se transformar em uma nuvem de poeira; tem uma forca física sobrenatural; tem a capacidade de rejuvesnecer de acordo com a quantidade de sangue humano que ingere e pode viver eternamente. Mas tem seus poderes extremamente limitados pela luz solar, é combatido com símbolos religiosos como crucifixos, àgua benta e óstia; só entra nos lugares se for convidado e pode ser morto com uma estaca no coracao e se for degolado.
O segundo livro, que temos que ler até o dia 26, é Salem's Lot, do Stephen King. Eu nao tinha muitas informacoes sobre o livro quando comecei a lê-lo na versao em inglês, de bolso, comprado usado no Amazon.de por 2,50€. Comecei a lê-lo no início da semana passada, e desde entao nao tenho tido mais sossego..


Uma coisa é você ler um livro com uma narrativa muito bem construída que se passa em um lugar totalmente diferente de onde você vive. Se eu tivesse lendo em Goiânia, estaria tudo certo. Os arranha céus, o calor, a quantidade de pessoas e carros, até a arquitetura das casas e o fato de Goiânia ser uma cidade nova me distanciariam muito da narrativa e eu sei que eu fecharia o livro sossegadamente, sairia na rua à noite e nao teria medo. Mas e quando a história se passa num lugar exatamente igual ao que você mora?
Salem's Lot é o nome da cidade em que as histórias narradas acontecem. E quando eu li a descricao da cidade, nao fosse o esclarecimento de que ela fica na Nova Inglaterra, ou seja, nos Estados Unidos, eu poderia jurar que Stephen King estava descrevendo Eichstätt.
Eichstätt é exatamente igual Salem's Lot. Uma cidade com poucos habitantes (14.000 em época de aulas, 10.000 nas férias), situada dentro de um parque ecológico nacional, dentro de um vale. Montanhas a cercam por todos os lados. Faz muito frio no inverno (ano passado, os termômetros marcaram -20° em janeiro e fevereiro). A vegetacao nessa época some. Quem tem orkut e viu as fotos dos jardins lindos de Eichstätt pode esquecer... Agora no inverno as flores se retraem, e as folhas verdes, amarelas e vermelhas caem das àrvores, dando a elas aquele tom fantasmagórico que nós, brasileiros, só conhecemos das paisagens de filmes, geralmente quando sao de suspense. A neblina é constante, espessa, branca, quase palpável. O ar é constantemente úmido. As casas sao em sua maioria muito bonitas, com uma arquitetura antiga. A cidade tem 1.100 anos de história, e uma ponte da qual as supostas bruxas (em sua maioria mulheres ruivas) eram jogadas no rio Altmühl dentro de uma espécie de gaiola para ali morrerem afogadas. A cidade é muito católica e tem igrejas em todos os cantos, com torres enormes e aspecto beeem antigo. À noite, no inverno, é uma paisagem típica de filmes de terror. E o fato do cemitério ficar a cerca de 100 metros da minha casa, estar sempre de portoes abertos e ter túmulos grandes de granito só reforca essa imagem aterrorizante. Tudo isso faz com que eu tenha a sensacao de que, ao fechar o livro toda vez que termino de ler algumas páginas, eu ainda continuo dentro da história. Eichstätt é uma cidade muito segura. Você pode andar sozinha a noite 3 da manha com 99% de certeza que nada vai acontecer com você. É a segunda cidade da Europa com menos desempregados, por causa da universidade e da fábrica da Audi, principalmente. Mas depois que comecei a ler Salem's Lot e constatar todas as semelhancas entre as duas cidadezinhas, nao consigo mais andar sozinha a noite. Nao tenho medo das pessoas de Eichstätt. Tenho medo do que eu teoricamente nao posso ver, e do que parece estar constantemente me vigiando, o tempo todo, durante a noite.
Ainda estou na metade do livro que tem 600 páginas, mas já resolvi que só posso lê-lo durante o dia. Meu quarto tem janelas enormes de vidro e, quando olho através delas a noite, o que eu vejo é muito neblina branca e àrvores sem folhas, iluminadas por uma luz muito forte da lua. A impressao que eu tenho é de que a qualquer momento um vampiro extremamente bonito vai surgir na minha janela, me hipnotizar e pedir pra entrar, e eu vou acabar deixando... Quando os corvos resolvem piar, ou os cachorros da vizinhanca resolvem uivar, a coisa piora. Pior ainda quando um corvo resolve dar um rasante na minha cabeca, ao lado do cemitério. Quase infartei, e estava ainda de dia.
Nao bastasse todo esse clima, que me faz sentir como se eu fosse personagem de um filme de vampiros, com toda essa gente branquela à minha volta e essa paisagem favorável, ontem eu fui assistir ao filme Salem's Lot na Uni. Todas as quartas essa turma da disciplina de Vampiros organiza uma sessao de algum filme. Semana passada fui a uma festa e perdi o meu preferido, Entrevista com o Vampiro. Ontem decidi que iria, e quando a Laure, a francesa que mora comigo, me disse que passaria Salem's Lot, cheguei a pensar duas vezes. Mas que bobagem Ana, é só um filme. Fui. A sessao comecou mais cedo que o habitual, às 7 e meia (ou meia 8, como dizem os alemaes). Como aqui escurece 4:30 da tarde, já estava super escuro. Tudo bem, o caminho ao lado do cemitério que é o mais curto pra chegar na Uni da minha casa ainda estava movimentado. Cheguei no Studihaus, me acomodei no sofá, comi um pedaco de torta de maca (maldito teclado alemao sem cedilha e acentos) e fui informada de que o filme acabaria 11:30. Dei gracas a Deus que a Laure voltaria pra casa comigo. O filme, como a maioria dos que sao baseados em livros, infelizmente nao é muito fiel. Mas ainda assim, é assustador. Algumas partes chegam a ser engracadas, de tao trash e nojentas, mas em outras o posicionamento da câmera, a trilha sonora e a iluminacao dao um tom realmente aterrorizante. E a Salem's Lot do filme, como eu imaginei, realmente se parece muito com Eichstätt. Como o filme era longo, rolou uma pausa pra ir ao banheiro. Laure foi comigo. Nós duas estavamos muito assustadas pra subir até o segundo andar do prédio sozinhas. Quando o filme acabou, as luzes foram acesas e eu percebi que nao era a única encolhida no sofá...
Um dos franceses que assistiu ao filme comentou que a Franca estava perdendo pra Irlanda e poderia ficar fora da Copa. O comentário ajudou a descontrair o ambiente. Eu saí com a Laure e mais duas francesas, que pegaram suas respectivas bicicletas e foram embora. A lua estava cheia, a neblina estava baixa e densa, e a cidade estava deserta. Quando eu e a Laure entramos sozinhas no caminho estreito ao lado do cemitério, meu coracao disparou. O caminho é iluminado por uma luz fraca, que fica geralmente encoberta pelos galhos das àrvores. Quando passamos em frente ao portao do cemitério e eu vi todas aquelas velas acesas, fazendo sombra naqueles túmulos enormes, eu sugeri a Laure que cantássemos 'Heute ist so ein schönes Tag', uma musiquinha alema cantada por criancas e também por adultos bêbados na Oktoberfest. Comecamos a cantar, uma olhando pra outra, rindo de pavor, até que decidimos, sem dizer nada uma pra outra, simplesmente correr. Corremos desesperadamente, cantando pra evitar ouvir qualquer coisa, e só paramos quando entramos em casa. Ali um vampiro só poderia entrar se o convidássemos, e já sabíamos que, caso um deles aparecesse, era só evitar olhar nos olhos...
Subimos as escadas sentindo falta de ar, rindo dessa situacao toda, mas ainda nao muito tranquilas. Acendemos as luzes da casa, cada uma acendeu as luzes do seu quarto, checamos a janela, fechamos as cortinas, e estava tudo bem. Mas só fiquei mais tranquila quando liguei meu computador e comecei a conversar potocas com meus amigos. Ainda assim, por precaucao, peguei o terco (cedilha) que minha tia me deu antes de eu vir, verde fluorescente, que brilha no escuro, e coloquei debaixo do meu travesseiro. Cobri todo o corpo, até o pescoco com meu edredon e comecei a pensar nas minhas boas lembrancas, e a rezar pra que meu subconsciente retardado nao me sabotasse e nao me fizesse sonhar com tudo isso que é, ao mesmo tempo, tao sobrenatural mas TAO próximo da minha realidade.
Talvez teria sido melhor deixar pra cursar uma disciplina dessas em qualquer outro lugar, menos em uma cidadezinha como Eichstätt, a Salem's Lot alema.

ps: consegui dormir bem, nao lembro com o que eu sonhei, mas acordei com dor nas costas por ter dormido toda encolhida.