terça-feira, 7 de agosto de 2012

July

Chegou aqui em casa em agosto de 1999. A contragosto dos meus pais, mas três filhos pirralhos zunindo na cabeça deles e apaixonados por um floco de pelos cor caramelo os venceram. Chegou acanhada. Na memória, ainda estavam frescos os maus tratos que recebeu na casa anterior, pelo simples fato de fazer xixi. Como se fosse um imenso pecado fazer xixi. E ainda ficava o dia todo presa em um banheiro. Mal sabia ela que, na família com quem viveria a partir de então, xixis jamais seriam  um problema.

Com o tempo, foi ganhando a casa até se tornar dona da situação. Escolheu seus queridos (na ordem: minha mãe, meu pai, eu, meus avós maternos) e pronto: com todo o resto, ela implicava. Até dava algumas mordidas de vez em quando, mas nada grave. Não mordia os pés das visitas, mas era melhor que elas não tentassem passar a mão na sua pelugem macia, que estava ficando branca com o tempo. Era difícil resistir e não espremer suas orelhas. Mas eu mesma o fazia com medo de uma dentada (e sim, doía pra cacete!).

"Vamos passear"? - essa era a frase chave para o início da loucura. Latia loucamente, pulava e saía correndo do sofá da sala pro quarto e de volta pro sofá. De vez em quando, calculava errado o salto, vinha correndo muito rápido e poft, se esburrachava no pé do sofá. Aí fazia cara de quem não entendeu e parava de correr. Se o passeio fosse de carro, ela gostava mais ainda. E colocava o cabeção branco peludo pra fora, tomando um ar, "surfando", como diz meu irmão. Eu ficava observando do retrovisor a carinha de felicidade dela. E ficava, automaticamente, feliz.

Quando saíamos e não podíamos levá-la (o que acontecia com mais frequência devido à sua postura "altamente seletiva", tanto com pessoas quanto com outros animais), ela entendia o "tchau" e ia direto pro quartinho, deitar na caminha e ficar emburrada. Mas aí, chegávamos, e ela só sabia fazer festinha de um em um, abanando o cotoco de rabinho e dando boas vindas, com um olhar tão apaixonado que, algumas (muitas) vezes dei uma de Felícia e espremi ela além da conta, confesso. Devia ser uma tortura ver a July e não poder apertá-la. Meu namorado mesmo nunca foi o maior ídolo da July. Ela latia, rosnava, cheirava ele e depois ficava me vigiando. Eu espremia ela muito, ele só olhando. Não devia ser fácil, porque aquela bola branca de pelos era um convite ao abraço mais gostoso do mundo.

Em alguns finais de semana íamos para a chácara do meu pai. Ela ia junto, claro. Para desespero de todo mundo, a bonita descobriu a represa. Mal descia do carro quando chegávamos, já corria loucamente, em linha reta, em direção à represa. E pulava. Sim, dava um salto digno de medalha olímpica. Entrava ali branca, saía marrom cor de terra. Depois, pra terminar, rolava na terra, literalmente. Minha mãe ia ao delírio!

Lembra da história do xixi? Pois é. Não sei como isso se deu, mas ela passou grande parte da sua vida sem derramar uma gotinha de xixi aqui em casa. Nem o número 2 ela fazia. Claro que, pra isso, passeávamos com ela de 2 a 3 vezes ao dia. Era chegar na grama e fazer xixi. E o número 2. Mas aqui em casa, de jeito nenhum. Às vezes, quando chovia muito, meu pai a levava pra sacada e conversava com ela. "July, meu bem, pode fazer xixi aqui, não tem problema, ninguém vai brigar. Tá chovendo, não dá pra sair". O papo era em vão. Ela ficava lá, com carinha de apertada, mas não fazia de jeito nenhum. Aí lá ia meu pai, de carro e sombrinha, parar em alguma pracinha cheia de lama pra que ela pudesse se aliviar.

Foram inúmeras brigas dentro do elevador, com os demais cachorros do prédio. Só o Billy, cocker spaniel de uma das vizinhas, é que tinha o poder de não irritar a July. Ela entrou no cio, como toda mocinha. Teve que usar calcinha com absorvente, e detestava. Nunca se deu com nenhum tipo de roupa. Ficava sentada no mesmo lugar até que alguém tirasse aquela coisa ridícula dela. Mas não tinha outro jeito. Até então eu não tinha os esclarecimentos que tenho hoje sobre a importância da castração e de que muitos dos filhotes fofinhos vão parar em mãos erradas e são simplesmente abandonados. Ou mau tratados, como ela mesma foi quando nasceu. Pois bem, ela namorou. E teve filhotinhos. Os seres mais bonitinhos que já vi na face desse planeta. Ficou ainda mais brava, para proteger a prole. Não me lembro muito bem, mas sei que ela não ficou feliz quando teve que ver os filhotes embora e passou um tempo emburrada com todo mundo.

Um episódio curioso e engraçado era quando ela voltava tosada do pet shop. Morria de vergonha, acho que se sentia nua, e ia pra debaixo da cama. Nada a tirava de lá. Até pra passear ela ficava acanhada, e ia se esfregando na parede, como que quisesse se esconder dentro dela. Falávamos que ela estava liinda, mas ela não era boba e não acreditava. Um dia, minha mãe trocou todas as camas da casa por camas que não têm um vão embaixo. Agora, a opção dela era se esconder no seu quartinho, emburrada.

Durante meus anos de ensino médio, eu era a única que ficava em casa a tarde. Eu, July e minha tartaruguinha. Aliás, até que fosse estabelecida uma convivência harmônica, July insistia em dar umas patadas básicas na tartaruga, que se enfiava em seu casco e saia deslizando no chão. Depois, ela percebeu que ia ter que dividir o espaço e parou com a graça. Nesse tempo em que passava as tardes sozinha com a July, fomos ficando cada vez mais próximas. Ela foi minha maior (e melhor) companhia, posso afirmar com certeza. Se eu chegava alegre, contava tudo pra ela e ela vibrava comigo (sim, ela pulava em mim e eu a abraçava). Se fosse o contrário, eu dava um cafuné nela, ia pro quarto e ela vinha me seguindo. Eu me deitava triste na cama e ela ficava me olhando com cara de "que foi?". Ah, aquela carinha. Aí eu esquecia o problema e ia lá apertar ela. Era a minha terapia. Foi assim com brigas entre amigas, com a perda de avós, com o término de relacionamentos. Ela sempre esteve ali, do meu lado, me fazendo rir nos piores e nos melhores momentos.

Assistia TV na sala com a gente e pedia carinho. Quando eu era mais nova, me deitava com a cabeça no colo da minha mãe, de bruços, e ela acariciava minhas costas vendo novela. Não preciso dizer que isso não durou muito. Minha mãe, inicialmente, tinha que ficar com uma mão em mim, outra na July, que subia no sofá e arranhava a mão da minha mãe até que ela decidisse coçar a cabecinha dela. Depois de um tempo, não tinha mais espaço pra mim. Mas eu nem achava ruim. Ficava olhando a cara de satisfação dela ao receber o cafuné da mamãe. Impagável.

Às vezes, ela me pedia cafuné também. Eu dava, aí, do nada, ela me mordia. Ficava pê da vida com ela por algumas horas. Mas depois ela ficava beirando, e beirando, como que pedindo desculpas, e lá estava eu, apertando ela de novo (mas esperta pra qualquer reação súbita que ela poderia ter). Aceitamos que ela era bipolar e pronto.

Adorava uma meia suja (quanto mais chulé, mais ela gostava de pegar, morder e ficar vigiando). Trocava qualquer brinquedo por uma meia suja, e sumia com nossos pares de vez em quando. Além de comer meias, comia tudo que déssemos pra ela: de melancia a sopa. Claro que não dávamos essas coisas com frequência, sua alimentação sempre foi baseada em ração, mas de vez em quando não resistíamos aos seus olhares pidões e dávamos um ou outro pedaço de carne. Também adorava uma laranja, desde que a gente a mastigasse primeiro. Sim, eco. Mas ela amava!

Fomos tendo notícias de que os cachorros com quem convivemos foram morrendo. E a July foi ficando, firme e forte na sapatilha. Até que começou com uma tosse estranha. Conversei com um veterinário que me disse que poderia ser um vírus. Acreditamos nele, mas infelizmente ele estava errado. Quando a tosse piorou, e parecia que ela ia vomitar toda vez que começava a tossir, meu pai a levou em uma clínica. Lá, o diagnóstico: coração inchado, sopro no coração e água nos pulmões. Foi um baque. Eu não queria acreditar que aquele serzinho, parte da minha vida há 12 anos, estava chegando perto da morte. Sempre soube que poodles vivem, em média, 10 anos. Ela já estava fazendo "hora extra". Mas não queria acreditar. Mesmo velhinha, ela ainda implicava com as pessoas (ok, bem menos que antes), ainda latia, ainda fazia muita festa quando a gente chegava em casa e ainda era super carinhosa.

Como ela estava tomando diuréticos, teve que aprender a fazer xixi na sacada. E aprendeu. Mas mesmo assim, só na sacada. E já estava começando a se adaptar aos tapetes higiênicos que meu pai comprou. Era uma lady nesse sentido. Mas continuávamos passeando com ela 3 vezes por dia. Agora, um passeio na esquina de baixo já a deixava com falta de ar. Às vezes, a levávamos nos braços, ela fazia as necessidades e voltava nos braços de novo, quando percebíamos que ela estava com dificuldades respiratórias. Um dia, ela passou muito mal depois de uma ida ao pet para tomar banho. Não respirava direito, ficou com a língua bastante roxa, não conseguia andar, parecia muito tonta. Meu pai correu com ela pro veterinário e ela passou a noite no balão de oxigênio. Eu chorei a noite inteira. Queria ter ficado lá com ela.

Depois ela voltou bem. Teve que tomar mais remédios, mas nada demais. Nesse ponto ela já tinha que comer ração para animais cardíacos, que ela não gostava muito. Minha mãe começou a preparar arroz, carne moída e frango pra ela, sem sal. Ela parecia não perceber a diferença de gosto e comia feliz. Eu ia almoçar e já levava o potinho de carne moída sem sal junto, pra ficar dando pra ela, de modo que ela pensava que era a carne do meu prato. E ficava feliz assim.

Ela já não corria pela casa, mal implicava com os cachorros do vizinho e estava muito mais dócil do que de costume. Além de estar cada vez mais próxima de mim. Eu chegava do trabalho e ela era a minha companhia, sempre. Depois meu pai chegava, mas quase sempre saía de novo. Eu ficava trabalhando aqui de casa e ela sempre deitada aos meus pés. Eu parava pra tomar água ou ir ao banheiro, ela vinha junto. E eu finalmente tirava alguns minutos pra brincar com ela. Mas nada de correria pela casa. Ela já não aguentava isso.

Ontem foi o dia em que mudei meu turno no trabalho. Passei a trabalhar fora de casa no período da tarde. Passei a manhã com ela aos meus pés, enquanto eu marcava umas consultas médicas pra mim. Depois, brinquei com ela. Ela estava particularmente fofa, coma barbicha suja. Desde que ela passou mal depois do banho no pet, começamos a dar banho nela aqui em casa. Eu devia ter dado banho nela no fim de semana, mas só me atinei pra isso ontem de manhã. Era um processo demorado. Pra que ela ficasse tranquila, eu (ou minha mãe) entrávamos debaixo do chuveiro junto com ela. Não dávamos banho na pia, porque a água era gelada demais. Tomava banho no chuveiro mesmo. Depois, a secávamos com secador. Era muito pelo, e ela detestava que secássemos seu traseiro.

Eu não dei o banho e ela estava sujinha, mas seu bigode marrom estava um charme. Brinquei muito com ela, apertei suas orelhas. Me arrumei pra ir trabalhar, almocei. Aí demos uma voltinha e ela fez suas necessidades. Voltamos para casa, esquentei sua comidinha sem sal no microondas e ela comeu seu frango, satisfeita. Percebeu que eu ia sair e ficou um pouco emburrada. Mas ainda me deixou dar um beijo em sua testa e apertar suas orelhas gordas e fofas. E eu fui trabalhar. Voltei sete horas e meia depois, quando encontrei meu pai sentado no sofá. A July não veio fazer festinha e nem estava deitada nos pés do meu pai. Algo estava errado. Ela foi a uma consulta de retorno no veterinário, meu pai pediu para que dessem um banho nela. Ele ficou ao lado dela, pra tranquilizá-la, mas ela não resistiu. Começou a passar muito mal, ficou sem ar, semi desmaiada. O veterinário tirou 2 litros de água dos pulmões dela e disse que seu coraçãozinho estava muito ruim. Ela estava sofrendo. Diante da situação, meu pai, quase sem conseguir falar, autorizou que a injeção fosse dada. E ele nunca mais a viu. Voltaram apenas com a sua coleirinha e a devolveram pro meu pai, que chegou em casa, chorou e ficou 4 horas sentado no sofá, esperando que o restante da família chegasse para dar a notícia.

Deixei a July alimentada e feliz pela manhã. De volta do trabalho, à noite, a casa estava mais vazia do que nunca. Já tem 15 horas que eu soube da morte dela e eu não consegui parar de chorar, apesar de ter dormido um pouco. A casa está vazia. Não tem barulho de unhas batendo no piso de madeira. Nem suas tosses doloridas. Nem seu cheiro. Nem sua companhia enquanto estamos deitados na cama ou vendo TV. Não tem mais um pedaço enorme da minha alegria diária.

Dizem que cachorros vivem pouco porque já nascem sabendo amar de um modo que nós, seres humanos, levamos a vida inteira pra aprender. Acredito muito nisso. Se tem algum ser evoluído nessa relação, acho que os animais estão na frente. Eu tenho certeza que nenhum ser humano jamais será tão carinhoso comigo quanto a July foi. Claro que meus pais me amam, meus irmãos e alguns amigos. Mas isso não é demonstrado com atos de carinho todos os dias. Não tem festinha sempre que eu chego em casa. Sem julgamentos, só instinto. Só amor por amor e pronto. Sem falar, só nos atos, eu me sentia a pessoa mais amada do mundo. E a amei muito. O amor da minha vida é uma poodle que me deixou ontem com um buraco enorme no coração. Mas ao mesmo tempo, feliz, porque tive a chance de dar uma vida digna a ela, cercada de cuidados e muito carinho. Foi a troca mais perfeita que tive em toda a minha vida. E a mais simples. Só amor e mais nada.  Dói agora, mas não é nada perto de toda a felicidade que ela me deu nesses 13 anos. Faria tudo exatamente igual. E seria feliz, como fui. E ela seria feliz, como sei que foi.


OBS: Muitos (muitos) cães não têm a mesma sorte que ela teve e aguardam um lar. Quem quiser viver essa experiência maravilhosa deve considerar a adoção. Aqui, aqui , aqui  e aqui existem animais disponíveis, aguardando ter experiências tão bacanas quanto a July teve. Considere a adoção e atenção para a castração. Todos esses animais não são "de rua". Não existem animais de rua, existem donos desatentos que deixam os animais fugirem, procriarem sem controle e depois não sabem o que fazer com os filhotes. Ou pessoas ruins de coração, amargas e podres por dentro que simplesmente abandonam um ser que só quer amar e ser amado em troca. Adoção e castração são muito importantes pra começar a mudar a realidade do abandono. Quem não puder adotar um animal, pode entrar em contato e oferecer ajuda como lar temporário, ou ajudando com rações ou medicamentos, ou transporte de animais resgatados ou mesmo uma quantia mensal em dinheiro, que pode até ser 5 reais, não importa, já ajuda muito. Todos trabalham VOLUNTARIAMENTE, com nenhuma ajuda de custo do governo. A Aspaan conseguiu uma área em Aparecida de Goiânia para seu abrigo, mas não o apoio para construir o abrigo, e precisa de material de construção, mão de obra, etc. Ajude se puder, e eu sei que você pode.


E que minha July esteja em algum lugar bom, e em paz.


Um comentário:

Ludmila Catani disse...

Seu texto está lindo, de emocionar. Senti o seu sentimento, o seu carinho e amor por ela. Uma pena a July ter partido, mas é gratificante saber que ela te fez tão feliz ao longo de taaantos anos. ;)Realmente um grande ser e uma grande memória.
Fique em paz Ana, a July já está eternizada no coração de sua família.
Vou pedir aos céus muita força e compreensão para vc e sua família.
Beijos,

Lud!